A Representação do feminino nas piadas machistas

A REPRESENTAÇÃO DO FEMININO NAS PIADAS MACHISTAS
E FEMINISTAS

Gisele Maria Franchi – IEL/Unicamp1

Introdução

Ninguém jamais vencerá a guerra
dos sexos: há muita confraternização
entre os inimigos.
Henry Kissinger, diplomata norteamericano.

As piadas são um corpus de pesquisa discursivamente rico: mobilizam discursos controversos, operam com estereótipos, veiculam preconceitos, enfim, retomam discursos profundamente arraigados (cf. POSSENTI, 1998). Logo, os discursos que nelas circulam efetivamente existem, ou seja, não foram inventados pelas piadas. Entretanto, fora desses textos, tais discursos circulam mais livremente apenas na esfera privada, uma vez que sua circulação na esfera pública pode acarretar problemas, pois, muitas vezes, são politicamente incorretos e podem, por isso, até gerar processos jurídicos (como no caso de discursos racistas, homofóbicos, machistas, entre outros).

Bastante engenhosas, as piadas exploram algumas técnicas lingüísticas como estratégias para que a veiculação de discursos proibidos não seja explícita, o que lhes conferem certa liberdade de circulação. São textos que oferecem boas pistas acerca dos preconceitos e dos tabus vigentes em uma sociedade: se, por exemplo, uma piada que ridiculariza os gays circula, é porque a sociedade, de alguma forma, é (ou, pelo menos, foi) homofóbica. Isso posto, nosso objetivo, neste artigo, é responder à pergunta: como a mulher está representada nas piadas machistas e nas piadas feministas? As bases da nossa análise serão sustentadas pela Análise do Discurso francesa, especialmente no que se refere aos conceitos relativos à memória discursiva, à ideologia, às condições de produção e à formação discursiva.

1. As Piadas Machistas

O amor da mulher pelo homem
não é um sentimento de origem sexual,
mas uma forma destes devotamentos
que se desenvolvem entre
um ser inferior e um ser superior.
Cesare Lombroso, médico italiano
(apud RAGO, 1997, p. 592).

Como dissemos, as piadas veiculam apenas discursos que circulam socialmente. Partiremos, pois, dessa afirmação para analisar como a mulher está representada nas piadas machistas. Desse modo, observaremos alguns dos discursos que eram veiculados na época em que o machismo predominava, ou seja, antes da “revolução” feminista, buscando compará-los aos que 1 Mestranda no Programa de Pós-graduação em Lingüística no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Bolsista da Fapesp, circulam nas piadas machistas nos dias de hoje. Nosso objetivo, com isso, é descrever a memória discursiva a que essas piadas remetem.
Pêcheux (1975), ao considerar o discurso como um efeito de sentido entre locutores, trouxe para o debate as condições históricas de produção. O interdiscurso é parte dessas condições de produção e determina os dizeres a partir da relação do sujeito com a língua e a sua história, através da ideologia: ao enunciar, o sujeito é atravessado pelo Interdiscurso. Dito de outra maneira, ele toma posição, inscreve-se num já-dito, numa memória discursiva que o antecede e não depende de sua vontade. Descrevendo a memória discursiva a que as piadas remetem, portanto, será possível identificar as ideologias bem como os estereótipos que circulam nas piadas machistas.
Em um artigo em que discute a questão do trabalho feminino e da sexualidade nas primeiras décadas do século XX, M. Rago (1997) chama a atenção para o fato de haver delimitação de espaços entre os gêneros. Segundo a autora, ainda nos anos 20, a posição da mulher na divisão social e sexual do trabalho era definida a partir de suas funções biológicas, o que a condicionava a ocupar posições subalternas na hierarquia produtiva e, principalmente, a executar os afazeres indispensáveis para a casa e a família. Isso posto, observemos, então, as seguintes piadas2: 
Qual é o feminino de “deitadão no sofá vendo televisão”?
“Em pezona na pia lavando louça”.
Dois homens conversando:
A: Vou dar mais liberdade à minha mulher.
B: Sério?
A: É. Vou ampliar a cozinha.
Essas piadas rememoram o discurso de que os serviços domésticos cabem exclusivamente à mulher. Com efeito, elas retomam o estereótipo segundo o qual “lugar de mulher é na cozinha”. É, pois, com base nessa memória discursiva, nesse já-dito, que muitas piadas machistas funcionam.
No entanto, na segunda piada, um outro discurso é veiculado: ao contar para o amigo que vai ampliar a cozinha para dar mais liberdade à mulher, está pressuposto3, portanto, que sua mulher não tem muita liberdade (caso contrário, não seria preciso dar mais liberdade a ela).
Mais do que isso: está subentendido que é o marido quem controla a esposa, ou seja, que ele tolhe sua liberdade. Em outras palavras, é retomado o discurso segundo o qual “os homens mandam nas mulheres”4. Discurso esse que já circulava, por exemplo, durante o período colonial: E. Araújo (1997) lembra que, naquela época, a mulher devia plena obediência ao pai e, depois de casada, ao marido – marido esse que a jovem nem sequer tinha liberdade para escolher, pois a escolha do noivo cabia ao pai da moça.
Limitada à esfera privada e controlada pelo marido, a mulher deveria evitar qualquer tipo de atividade que pudesse atraí-la para a esfera pública. Conforme Rago (1997) chama a atenção, o positivismo pregava que as mulheres não deveriam possuir dinheiro, “um objeto sujo, degradante e essencialmente masculino, portanto, contrário a sua natureza” (RAGO, 1997, p.592). Dito de outra forma, “dinheiro e, conseqüentemente, trabalho são coisas de homem”. A essa memória discursiva, estão veiculados textos humorísticos como esse:
Um homem de sucesso é o que ganha mais dinheiro do que sua mulher consegue gastar. Uma
mulher de sucesso é a que consegue encontrar um homem desses.
2 Todas as piadas citadas neste trabalho circulam na rede mundial de computadores.
3 Tanto o pressuposto como o subentendido, de acordo com Ducrot (1984), implicam “idéias” não expressas de maneira explícita. A diferença é que, no caso do pressuposto, as “idéias” são conseqüências do sentido de certas palavras ou expressões.
4 Eis um outro exemplo de piada que veicula esse estereótipo: A última palavra é sempre da mulher:
“Sim, senhor!”. 
A “mulher de sucesso” não é definida como aquela que se deu bem em sua profissão, mas como a que encontrou um marido rico. Em outras palavras: é a mulher sustentada pelo homem. Outro discurso veiculado no exemplo acima é o de que as mulheres são gastadeiras: se um homem pode considerar-se bem sucedido ao ganhar mais dinheiro do que sua mulher pode gastar, está subentendido que ela gasta demais. Mas ela não gasta o próprio dinheiro, posto que não o possui: ela não trabalha. É o homem que provê as necessidades materiais da mulher. Conforme já mostramos, um outro discurso machista que circulava abertamente durante o período colonial era o de que a mulher deveria ser controlada pelo homem. Na verdade, o que exatamente deveria ser controlada era a sexualidade feminina. Com efeito, E. Araújo explica que o controle da sexualidade da mulher era o principal alvo de instituições como o Estado, a Igreja, a Família e a Escola: “tudo confluía para o mesmo objetivo: abafar a sexualidade feminina que, ao rebentar as amarras, ameaçava o equilíbrio doméstico, a segurança do grupo social e
a própria ordem das instituições civis e eclesiásticas” (ARAÚJO, 1997, p. 45). Realmente, o papel das instituições, ou melhor, dos aparelhos ideológicos do Estado, de acordo com Althusser (1980), é assegurar a submissão à ideologia dominante: os aparelhos, bem como suas práticas, são a existência material da ideologia. E esta, ainda segundo o autor, interpela os indivíduos enquanto sujeitos (ALTHUSSER, 1980, p. 93).
M. Pêcheux, que buscou a noção de ideologia na releitura que Althusser fez de Marx, formulou que “os indivíduos são ‘interpelados’ em sujeitos-falantes (em sujeitos de seu discurso) pelas formações discursivas que representam ‘na linguagem’ as formações ideológicas que lhes são correspondentes”. (PÊCHEUX, 1975, p. 160). O conceito de formação discursiva (FD) – introduzido por Foucault e reformulado por Pêcheux – é, pois, bastante relevante para o nosso trabalho, uma vez que ele é utilizado pela análise do discurso para designar o lugar onde se articulam discurso e ideologia.
Pêcheux (1975) explica que uma dada FD, ao assujeitar o indivíduo, o constitui, pois ela se configura em uma dada formação ideológica, a partir de uma dada posição sujeito e em uma dada conjuntura, se determinando, como espaço de dizer, pelas relações de poder e de saber que constituem cada classe. Assim, de acordo com o autor, as palavras recebem seu sentido da formação discursiva na qual são produzidas. Realmente, a palavra “liberdade”, por exemplo, tem um significado no discurso feminista e outro no discurso machista, uma vez que se tratam de FD’s diferentes. Dessa maneira, a liberdade sexual que as mulheres conquistaram recentemente é entendida pelos homens (machistas) como libertinagem:
Qual é a diferença entre a mulher e a pizza?
A pizza só dá para quatro.
Qual a semelhança entre uma mulher e uma formiga?
Se você tampar o buraco, elas ficam loucas.
Na primeira piada, é explicitado que há uma diferença entre a mulher e a pizza: esta só dá para quatro. Está, portanto, pressuposto que a mulher não dá apenas para quatro pessoas. Levando-se em conta que o sentido de “dar” assume, com relação à mulher, conotações sexistas, está subentendido que a mulher é sexualmente disponível. Algo semelhante acontece na segunda piada: a palavra “buraco” também assume conotações sexuais quando relacionada à mulher, pois se refere ao órgão genital feminino. O que está subentendido na piada é que, se as mulheres deixarem de fazer sexo, elas enlouquecem. Portanto, também é veiculado o estereótipo de que a mulher é disponível sexualmente. A relação entre loucura e sexualidade feminina remonta também a discursos que circulavam (abertamente) no passado. Priore (1997) observa que, entre os séculos XVI e XVIII, pensava-se que, se a mulher não se casasse e tivesse filhos (leia-se: se ela não tivesse a sua sexualidade controlada pelo marido), ela poderia sofrer de diversas enfermidades. Conforme a autora bem lembra, o próprio discurso médico endossava essa hipótese, pois acreditava que a saúde da mulher dependia única e exclusivamente de sua reprodução (inclusive, a ciência da época referia-se ao útero pelo nome de madre, “mãe” em italiano e em espanhol):
Essa natureza propriamente feminina, ordenada pela genitália, transformava a mulher num monstro ou numa eterna enferma e, vítima da melancolia, seu corpo se abria para males maiores, como a histeria, o furor da madre5 e a ninfomania. (PRIORE, 1997, p. 83)
Ainda de acordo com Priore (1997, p. 105), os médicos descreviam a mulher como um ser naturalmente frágil e intelectualmente inferior ao homem. A esse discurso, segundo o qual “as mulheres são (bem) pouco inteligentes”, remetem piadas como as que citamos abaixo: 
Por que as mulheres têm menstruação?
Porque burrice se paga com sangue.
Qual é a semelhança entre uma mulher e um computador?
É que os dois têm memória, mas inteligência, não.
Neste tópico, mostramos como a mulher está representada em algumas piadas machistas. Por meio da descrição da memória discursiva a que essas piadas remetem, foi possível identificar os principais estereótipos que nelas circulam, a saber: i) “serviços domésticos são de responsabilidade exclusiva da mulher”; ii) “o homem manda na mulher”; iii) “trabalho não é coisa de mulher”; iv) “a mulher é sexualmente disponível”; v) e “a mulher é intelectualmente (muito) inferior ao homem”.

2. As Piadas Feministas
Para compreender como a mulher está representada nas piadas, é fundamental conhecer as condições de produção desses discursos. Pêcheux (1969) define as condições de produção a partir da reformulação do esquema informacional da comunicação proposto por Jakobson (1963). Com base nesse esquema, ele propõe um outro, em que não haveria mais mensagem, mas discurso – que Pêcheux define como um efeito de sentido entre interlocutores (1969, p. 81). Para esse autor, o que Jakobson representava por A e B (e chamava, respectivamente, de “destinador” e de “destinatário”) deixa de ser entendido como sendo organismos humanos individuais e passa a ser concebido como lugares determinados na estrutura de uma formação social. Em outros termos, são posicionamentos historicamente constituídos.
Pêcheux (ainda em AAD-69) esquematiza várias relações que se formam a partir de como uma determinada situação se configura para uma certa formação discursiva – e não como essa situação se apresentaria para A ou B entendidos como indivíduos, segundo a concepção proposta por Jakobson. Essas situações também são concebidas como imaginárias, constituídas a partir das posições A e B – e também dependem de condições históricas: “O que funciona nos processos discursivos é uma série de formações imaginárias que designam o lugar que A e B se atribuem cada um a si e ao outro, a imagem que eles fazem de seu próprio lugar e do lugar do outro” (PÊCHEUX, 1969, p. 82). Todo discurso é constitutivamente marcado por essas relações imaginárias que se dão no interior de todo processo discursivo. Essas relações configuram, pois, as chamadas condições de produção do discurso.
No que se refere ainda às piadas machistas, suas condições de produção parecem ser as conquistas que as mulheres vêm alcançando após a chamada “revolução” feminista, principalmente no que se refere à maior liberdade sexual e à inclusão da mulher no mercado de trabalho (ainda que, de um modo geral, ela ocupe cargos mal-remunerados e desprestigiados). Haveria, portanto, uma certa preocupação masculina com o espaço social que as mulheres conseguiram, 5Uma das enfermidades que os médicos acreditavam que acometia o útero feminino era a sufocação da madre. Segundo a descrição de M. Priore, nessa doença “vapores subiam do útero, ou mesmo o próprio útero deslocava-se até a garganta, sufocando [a mulher]” (PRIORE, 1997, p.84). Já que elas passaram a competir com eles no mercado de trabalho, além de terem conquistado uma maior liberdade – no campo sexual, inclusive –, o que seria um (forte) indício de que eles estariam perdendo seu poder sobre elas. Isso justificaria, então, a retomada de discursos como os que mostramos que circulam nas piadas machistas: “lugar de mulher não é trabalhando fora: é em casa, fazendo os serviços domésticos”; “o homem manda na mulher”; “a mulher é intelectualmente muito inferior ao homem, por isso ela nunca vai conseguir obter as mesmas conquistas sociais de que eles foram capazes”; “a mulher é sexualmente disponível por natureza, por
isso precisa do homem para tentar controlar sua sexualidade”.
Conforme mostramos, em meio às conquistas que as mulheres têm alcançado, o discurso machista ainda encontra condições de produção na formação social para circular. Desse modo, as condições de produção das piadas feministas parecem ter a seguinte explicação: elas veiculam discursos que seriam uma forma de reação das mulheres contra o machismo, que ainda circula em nossa sociedade. Isso posto, passemos finalmente a buscar compreender como a mulher está representada nas piadas feministas. Comecemos por analisar a seguinte piada: Como se define um homem bom?
Um vibrador com uma conta bancária recheada.
De acordo com a piada, um homem bom é definido como aquele que seria capaz de satisfazer a mulher sexualmente (idéia representada por meio da figura do vibrador) e de sustentála financeiramente (daí ter uma “conta bancária recheada”). Com efeito, esses discursos são recorrentes nas piadas ditas feministas:
Quais os quatro animais de que uma mulher precisa?
Um jaguar na garagem, um vison no pescoço, um tigre na cama e um burro para pagar as contas. Tanto o carro de luxo (o jaguar) quanto o caríssimo casaco de pele (o vison) seriam financiados pelo marido (o burro que paga as contas). Contudo, a mulher só é representada nas piadas feministas como financeiramente dependente do marido quando ele for extremamente rico. Nesse sentido, o discurso machista segundo o qual “lugar de mulher não é trabalhando fora” parece ser complementado pelas feministas da seguinte forma: “lugar de mulher não é trabalhando fora, desde que ela consiga dar o golpe do baú”6.
As piadas feministas parecem contra-argumentar os discursos veiculados nas piadas machistas. Mais exatamente: elas parecem refutá-los. Conforme mostraremos, os discursos que circulam por meio das piadas feministas retomam os estereótipos veiculados nas piadas machistas, “coloca-os em cena”, para, então, refutá-los. A noção de refutação está assim definida no Dicionário de Análise do Discurso (CHARADEAU & MAINGUENEAU, 2004, p. 422): “A refutação é um ato reativo argumentativo de oposição. Do ponto de vista do uso, ‘refutar’ tende a designar quaisquer formas de rejeição explícitas de uma posição...”. Dessa forma, na piada que analisamos acima, é colocado em cena o discurso segundo o qual “lugar de mulher não é trabalhando fora”, mas não para concordar com os machistas que acreditam que “lugar de mulher é em casa, cuidando dos afazeres domésticos”: de acordo com a piada feminista, a mulher não precisaria trabalhar fora se ela conseguisse arranjar “um burro para pagar as contas”.
Ainda com relação à piada acima, é interessante ressaltar que a idéia de satisfação sexual não está representada por meio da figura do marido, mas na de um outro homem, que teria um ótimo desempenho sexual (o “tigre”). Realmente, é freqüente, nessas piadas, o estereótipo de que o marido é incapaz de satisfazer sexualmente a esposa: Qual é o nome da doença que paralisa as mulheres da cintura pra baixo? Casamento.
6 Eis um exemplo mais explícito: Quais são as medidas ideais de um homem? Oitenta, três, oitenta: oitenta anos, três infartos e oitenta milhões no Banco.
O que as mulheres mais odeiam ouvir quando estão tendo sexo de boa qualidade?
“Querida, cheguei!”.
Com efeito, nas piadas feministas, há uma certa referência àquilo que o homem machista pensa e diz a respeito da mulher: enquanto, nas piadas machistas, é veiculado o discurso segundo o qual “a mulher é sexualmente disponível, porque é de sua natureza ser assim”, em piadas feministas como as que citamos acima, essa afirmação (“a mulher é sexualmente disponível”) é reformulada (parafraseada) ao passo que sua explicação (“porque é de sua natureza ser assim”) é refutada. Desse modo, o discurso veiculado pelas piadas feministas seria algo como “a mulher tem vários parceiros sexuais, porque é difícil encontrar um homem bom de cama” 7. A título de exemplo, analisemos a seguinte piada:
- Você é médico. Acertei?
- Puxa! Como adivinhou?
- Intuição feminina. E deve ser anestesista.
- Não é possível. Como descobriu?
- Porque não senti absolutamente nada durante a noite toda.
Nessa piada, um homem e uma mulher que mal se conhecem (ela não sabia sequer qual era a profissão dele antes de “adivinhá-la”) têm relações sexuais “durante a noite toda”, mas ela não sente prazer algum. Por isso, seu parceiro é comparado, ou melhor, igualado a um anestesista, a um profissional que tem por função causar a diminuição ou a ausência da sensibilidade (no caso da piada, essa insensibilidade se daria no campo sexual). Aproveitemos ainda esse exemplo para fazer um parênteses. Embora a piada veicule o estereótipo segundo o qual “os homens não dão prazer sexual à mulher”, ela não o faz de modo explícito. Aliás, o próprio fato de o casal ter tido uma experiência sexual também é uma informação que o leitor ou o ouvinte da piada precisa inferir.
Realmente, para veicular seus discursos, as piadas utilizam algumas técnicas, como o pressuposto e o subentendido, que foram os casos que mostramos ao longo deste trabalho (mas há outras possibilidades, que abrangem todos os níveis lingüísticos: fonologia, morfologia, léxico, sintaxe, entre outros, cf. POSSENTI, 1998). Por isso, dissemos que as piadas utilizam certas técnicas como estratégias para que a veiculação de discursos proibidos não seja explícita. Daí, elas terem uma certa liberdade para circular socialmente. 
Isso posto, prossigamos com a nossa análise. A hipótese de que as piadas feministas parecem fazer referência ao discurso que circula nas piadas machistas, com o propósito de refutálo, pode ser sustentada também com relação à veiculação de outros discursos. Vejamos esse exemplo:
Por que os homens gostam tanto de carros e motos?
Porque são as únicas coisas que eles podem dirigir.
O discurso machista segundo o qual “o homem manda na mulher” é refutado pelo discurso feminista: os carros e as motos são as únicas coisas que os homens podem dirigir. Está, 7 Outros exemplos de piadas em que aparece o estereótipo segundo o qual “os homens não são capazes de satisfazer a mulher sexualmente”: Por que os homens na cama são como comida de microondas?Trinta segundos e já está pronto. / Quando uma mulher pára de se masturbar? Depois do divórcio. / Por que os homens querem se casar com virgens? Porque não suportam críticas. / Sabe quais os três maiores sonhos de um homem? Ter tantas mulheres quanto fala que tem, ser tão rico quanto seus filhos pensam que ele é e ser tão bom de cama quanto ele acha que é. Portanto, subentendido, que, com relação à mulher, o homem não “dirige”, ou seja, ele não está no comando. Em outros termos, “o homem não manda na mulher”8.
Com relação ao discurso machista segundo o qual “a mulher é intelectualmente (muito)
inferior ao homem”, há várias piadas feministas como essa:
Por que os homens gostam de mulheres inteligentes?
Porque os opostos se atraem.
A pergunta da piada incide sobre o porquê dos homens gostarem de mulheres inteligentes; a resposta afirma que é porque “os opostos se atraem”. Está, então, pressuposto que os homens são o oposto das mulheres: como elas são inteligentes, eles não o são. Novamente, portanto, verifica-se que as piadas feministas refutam o discurso veiculado pelos machistas: “a mulher é intelectualmente (muito) superior ao homem” .
Vejamos, agora, a piada abaixo:
O que o homem entende por ajudar na limpeza da casa?
Levantar as pernas para o aspirador de pó passar.
Essa piada parece reafirmar o discurso que vimos nas piadas machistas, segundo o qual “serviços domésticos são de responsabilidade exclusiva da mulher”. Entretanto, considerando o que investigamos acerca das piadas feministas, é possível afirmar que o seu propósito de circulação é diferente: enquanto os discursos machistas procuram reforçar a idéia de que as tarefas do lar são de responsabilidade da mulher, os discursos feministas têm como objetivo fazer uma reclamação a respeito do fato de que os homens não as ajudam nos serviços de casa10. Trata-se, portanto, de uma refutação do discurso machista.

Considerações Finais

Nas piadas feministas, conforme mostramos, a mulher está representada como inteligente e dona de si (de sua sexualidade, inclusive). Esses seriam, basicamente, os traços com os quais as mulheres atualmente se identificariam. Em contrapartida, nas piadas machistas, nossa análise mostrou que elas aparecem representadas com base apenas em estereótipos negativos, ou melhor, em estereótipos opostos. Nos termos de Possenti (2002), o estereótipo oposto (ou simulacro) é “uma espécie de identidade pelo avesso [...] uma identidade que um grupo em princípio não assume, mas que lhe é atribuída de um outro lugar, eventualmente, pelo seu Outro” (POSSENTI,
2002, p. 156).
De fato, como mostramos, as piadas feministas operam com base na refutação de discursos machistas. Ambas as piadas, portanto, denotam uma relação interdiscursiva conflituosa, em que diferentes posições enunciativas se enfrentam. Seus discursos são resultado de condições históricas de disputa, como é o caso da luta entre os gêneros. Com efeito, a compreensão 8 Eis outro exemplo de piada que veicula esse estereótipo: O marido decide mudar de atitude. Chega em casa todo machão e ordena: “Eu quero que você prepare uma refeição dos deuses para o jantar e quando eu terminar espero uma sobremesa divina. Depois do jantar, você vai me trazer um whisky e preparar um banho porque eu preciso relaxar. E tem mais: quando eu terminar o banho, adivinha quem vai me vestir e me pentear?”. Ao que a esposa responde: “O agente funerário”.
9 Chama a atenção o número de piadas que veiculam esse discurso. Eis mais algumas: Por que o homem não pode ter um bom caráter e ser inteligente ao mesmo tempo? Porque, assim, seria mulher. / Dois gays fazem amor. Qual faz o papel da mulher? O mais inteligente. / Por que as piadas de loira são tão curtas?
Para que os homens consigam entendê-las. / Como chamamos um homem que perdeu sua inteligência?
“Viúvo”.
10 Uma observação importante: como dissemos neste trabalho, os discursos que as piadas veiculam não
foram inventados por elas, ou seja, eles circulam pela sociedade. Pois, bem. Quando falamos no propósito desses discursos, estamos nos referindo ao propósito deles quando veiculados fora das piadas. Afinal, a finalidade de contar piadas é provocar o riso. Ninguém conta uma piada esperando, com isso, fazer um protesto. Em outras palavras, não é esse o propósito desse gênero.
Das condições de produção dos discursos que circulam por meio dessas piadas foi fundamental para que a representação da mulher fosse adequadamente analisada, já que, à primeira vista, pode parecer que as piadas feministas também representam a mulher de maneira negativa, uma vez que elas colocam em cena alguns dos estereótipos veiculados pelos machistas, como vimos.


Referências

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ARAÚJO, E. A arte da sedução: sexualidade feminina na colônia. In: PRIORE, M. (org.);
BASSANEZI, C. (coord. de textos). História das mulheres no Brasil. 9ª. edição. São Paulo:
Contexto, 2007 [1997], p. 45-77.
CHARAUDEAU, P.; MAINGUENEAU, D. Dicionário de análise do discurso. 2ª. ed. Contexto,
São Paulo, 2006.
DUCROT, O. O Dizer e o Dito. São Paulo: Editora Pontes, 1987 [1984].
PÊCHEUX, M. Semântica e Discurso - uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas, Editora
da Unicamp, 1988 [1975].
______. Análise automática do discurso (AAD-69). In: GADET, F., HAK, T. (orgs) Por uma
análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. 3.ed. Campinas:
Editora da UNICAMP, 1997 [1969].
POSSENTI, S. Os humores da língua: análise lingüística de piadas. Mercado de Letras, SP,
1998.
______. Estereótipos e identidade: o caso das piadas. In: Os limites do discurso. Curitiba: Criar
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PRIORE, M. Magia e medicina na colônia: o corpo feminino. In: PRIORE, M. (org.); BASSANEZI,
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RAGO, M. Trabalho feminino e sexualidade. In: PRIORE, M. (org.); BASSANEZI, C. (coord.
de textos). História das mulheres no Brasil. 9ª. edição. São Paulo: Contexto, 2007 [1997], p.
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